
Não, eles não moravam em Paris, nem em Nova York, mas de uns tempos pra cá tinham a sensação de que, sim!, de uma vez por todas estavam vivendo num apartamento do Soho ou coisa parecida. O motivo? Andavam ouvindo uns barulhos estranhos vindos do teto... Ele sempre disse: "Ah, não! Decadence avec elegance não dá! Tô fora!" Ela dava um sorrisinho e retrucava: "Ah, é charmoso, vai!" E não é que o apartamento era, digamos assim, bem estilosinho? Ele com o tempo até foi encontrando encanto naquele canto e parou com essa "perseguição" às coisas do passado. Ela, por sua vez, começou a ter que se esforçar um pouco pra ver beleza naquele predinho de dois andares com a pintura pedindo outra demão. "Mas, tudo bem", ela pensava, "o nosso apartamento é um oásis, até parece um loft antiguinho!" Mas os barulhos no teto só aumentavam e eles já não tinham mais dúvida (embora ela tentasse se enganar): os amiguinhos (como ele se referia aos visitantes) eram ratos, e provavelmente muitos. Não, não se tratavam de pombos, muito menos de gatos como ela tentava crer. Os visitantes se mostravam cada vez mais audaciosos, basicamente estavam à vontade. Ele e ela que se adaptassem. Resolveram chamar o seu Fernando pra fazer a tal da desratização. Ele veio, jogou as iscas e garantiu que o produto era bom e que ela não se preocupasse com os cadáveres, "os roedores comem o negócio e viram pó". Ãhn?! Ok. Ele e ela só queriam paz, continuar achando aquele lugar um oásis, continuar a receber os amigos ali e ouvir "A casa de vocês é tão francesa!" Não precisava ter tanta semelhança assim... O processo da desratização ia de vento em popa, os bigatos (seres cilíndricos mais conhecidos como vermes, decorrentes da decomposição de cadáveres) apareciam aos borbotões. Ele segurava tudo com incrível bom humor. Ela sentia seus nervos desmoronarem a cada mínima pista de vida ou morte dos amiguinhos. Numa manhã de segunda-feira, após um domingo caçando vermes e encharcando a lavanderia com cândida ("seu Fernando falou que mata os bigatos!"), ela foi checar a área de serviço. Na sua cabeça transtornada havia uma sentença, praticamente uma certeza: "Qualquer hora, quando eu menos esperar, vou me deparar com o inimigo". Ela abriu a porta, viu mais uns vinte vermes agonizando e percebeu que o lençol amarelo que estava pendurado no varal havia fraquejado e arrastava no chão. A ponta do lençol pendia exibindo uma rodela branca com moldura cinza. Ela tentou puxar a roupa de cama para cima e sentiu um peso que explicava tudo. Ali jazia o inimigo. Ela fechou a porta com força, sentiu o terror tomar conta do próprio corpo e entre lágrimas foi acordá-lo. Ele acordou e, tranquilo e infalível como Bruce Lee, foi verificar o local do crime. Pegou o lençol no mesmo ponto em que ela o fizera e sorriu: "Que peso? Não tem peso... Você não disse que cândida não mancha a roupa?"
Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.