segunda-feira, 30 de março de 2009

Pode entrar que a casa é sua

Não, eles não moravam em Paris, nem em Nova York, mas de uns tempos pra cá tinham a sensação de que, sim!, de uma vez por todas estavam vivendo num apartamento do Soho ou coisa parecida. O motivo? Andavam ouvindo uns barulhos estranhos vindos do teto... Ele sempre disse: "Ah, não! Decadence avec elegance não dá! Tô fora!" Ela dava um sorrisinho e retrucava: "Ah, é charmoso, vai!" E não é que o apartamento era, digamos assim, bem estilosinho? Ele com o tempo até foi encontrando encanto naquele canto e parou com essa "perseguição" às coisas do passado. Ela, por sua vez, começou a ter que se esforçar um pouco pra ver beleza naquele predinho de dois andares com a pintura pedindo outra demão. "Mas, tudo bem", ela pensava, "o nosso apartamento é um oásis, até parece um loft antiguinho!" Mas os barulhos no teto só aumentavam e eles já não tinham mais dúvida (embora ela tentasse se enganar): os amiguinhos (como ele se referia aos visitantes) eram ratos, e provavelmente muitos. Não, não se tratavam de pombos, muito menos de gatos como ela tentava crer. Os visitantes se mostravam cada vez mais audaciosos, basicamente estavam à vontade. Ele e ela que se adaptassem. Resolveram chamar o seu Fernando pra fazer a tal da desratização. Ele veio, jogou as iscas e garantiu que o produto era bom e que ela não se preocupasse com os cadáveres, "os roedores comem o negócio e viram pó". Ãhn?! Ok. Ele e ela só queriam paz, continuar achando aquele lugar um oásis, continuar a receber os amigos ali e ouvir "A casa de vocês é tão francesa!" Não precisava ter tanta semelhança assim... O processo da desratização ia de vento em popa, os bigatos (seres cilíndricos mais conhecidos como vermes, decorrentes da decomposição de cadáveres) apareciam aos borbotões. Ele segurava tudo com incrível bom humor. Ela sentia seus nervos desmoronarem a cada mínima pista de vida ou morte dos amiguinhos. Numa manhã de segunda-feira, após um domingo caçando vermes e encharcando a lavanderia com cândida ("seu Fernando falou que mata os bigatos!"), ela foi checar a área de serviço. Na sua cabeça transtornada havia uma sentença, praticamente uma certeza: "Qualquer hora, quando eu menos esperar, vou me deparar com o inimigo". Ela abriu a porta, viu mais uns vinte vermes agonizando e percebeu que o lençol amarelo que estava pendurado no varal havia fraquejado e arrastava no chão. A ponta do lençol pendia exibindo uma rodela branca com moldura cinza. Ela tentou puxar a roupa de cama para cima e sentiu um peso que explicava tudo. Ali jazia o inimigo. Ela fechou a porta com força, sentiu o terror tomar conta do próprio corpo e entre lágrimas foi acordá-lo. Ele acordou e, tranquilo e infalível como Bruce Lee, foi verificar o local do crime. Pegou o lençol no mesmo ponto em que ela o fizera e sorriu: "Que peso? Não tem peso... Você não disse que cândida não mancha a roupa?"

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Saber dizer

"Tinha um senso do cômico realmente precioso, mas precisava de gente, sempre de gente, para exercitá-lo, com o inevitável resultado de que perdia o tempo em almoços, em jantares, naquelas suas recepções, falando de tolices, dizendo coisas que nada significavam, embotando o fio do seu espírito, perdendo o discernimento." (Virginia Woolf em "Mrs. Dalloway")

Usar as palavras com propriedade e senso estético é de verdade uma arte!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Mau-humorado chique

Guerras com o mundo, grandes e pequenas guerras internas, solidões... Gran Torino, filme mais recente de Clint Eastwood, mostra o quanto é gênio este ator/diretor e como soube envelhecer sem perder o frescor. Fazia um tempinho que não saía do cinema com aquele nozinho na garganta, mas não aquele das emoções fáceis que nos acometem (confesso!) em certas comédias românticas ou dramalhões familiares ou vendo o Fantástico domingo à noite. Foi aquele outro (nozão, na verdade), de emoções que vêm lá de não sei onde, aquelas bem silenciosas que teimam em aparecer quando você mais quer fingir que não estão lá... Walt Kowalski, personagem interpretado por Eastwood, é tão de verdade que não há como não se encantar por ele. Ranzinza sem meias-palavras, cheio de preconceitos, à primeira vista seria o típico antiherói da vez. Mas é vivido com tanta propriedade pelo ator que não há como não se identificar em alguns momentos, repelir em outros, compreender em outros, enfim, se envolver pra valer. Filme obrigatório em tempos de muito barulho por nada, ops!, por Quem Quer Ser um Milionário...